A versão de Rupert Sanders intitulada “Branca de Neve e o Caçador”, apresenta uma grande carga de simbologias.
A produção de Joe Roth também acertou em cheio ao escolher um cenário nórdico europeu, bem próprio da Idade Média, afastando-se da visão açucarada, romântica e idílica que normalmente é oferecida pelos cineastas.
O roteiro conta com a presença dos clichês básicos, porém com uma roupagem completamente diferente, rica em detalhes. O enredo apresenta alguns elementos importantes, como a predestinação da protagonista, bem como todo árduo caminho que deve ser trilhado a fim de se alcançar a Vitória.
Contudo, a tônica da trama foi apresentada com uma energia fundamentalmente feminina, conversando de forma direta e reta ao coração de muitas mulheres, iluminando questões tão íntimas que talvez nem nós mesmas nos demos conta.
O filme inicia com a descrição do reino, onde durante um rigoroso inverno a rainha depara-se com uma rosa vermelha, a qual resiste bravamente a todo frio intenso, representando a força interna de suportar as adversidades. Ao acariciá-la, a rainha se perfura com o espinho e faz cair três gotas de sangue em meio à neve. Na sequência, nasce a linda princesa que se desenvolve com a luminosidade particular de toda criança, sendo ressaltada por sua mãe, pouco antes de morrer, a importância da beleza que vem do coração, a qual deve ser guardada e defendida.
Toda mulher entende do que se trata essa beleza, a qual se transmite pela doçura de um olhar, pelo conforto das palavras e ternura das atitudes, alegria em acolher e o instinto de proteger. Essa beleza pulsa em cada ser feminino e é muito real, embora menos palpável do que a física, a qual é facilmente percebida, sem exigir de seu observador uma maior atenção ou sensibilidade.
Após o falecimento da esposa, o monarca erroneamente se engaja em uma batalha contra um exército sombrio, cujos seres se desmanchavam durante o ataque, apontando uma natureza desumana originada pela magia negra. Ao final da batalha, Ravenna é encontrada como ‘prisioneira’ e, enfeitiçado por sua beleza, o Rei não percebe a emboscada, constituindo o matrimônio no dia seguinte, vindo a ser assassinado por ela na noite de núpcias.
Importante ressaltar que se estabelece uma forte conexão entre a nova rainha e a princesa, fato apontado pela própria Ravenna em sua breve conversa com a pequena Branca de Neve, momentos antes de se casar. Tal ligação é incompreendida por ambas, mas permeia toda trama. As personagens representam dois opostos, a dualidade presente em toda mulher, cabendo a cada uma escolher, consciente ou inconscientemente, em qual vibração irá sintonizar durante a trajetória de sua vida.
Segundo um provérbio chinês, “Cem homens podem formar um acampamento, mas é preciso uma mulher para se fazer um lar”. Logo, não se pode negar que os ambientes e as relações, a princípio, são regidas pela mulher, sendo ela quem dá o seu tom a tudo e a todos à sua volta.
Todos os seres humanos, independentemente do gênero, têm o poder de se conhecerem no momento em que interagem uns com os outros, e se nos auto-observarmos com atenção, crescemos cada vez que analisamos os reflexos nos espelhos. Portanto, nós podemos nos revolucionar através do outro e isso é fantástico! Todavia, a responsabilidade da mulher, da mãe, da fêmea é um pouco maior.
Caso essa energia esteja em desequilibro, a mulher não afeta apenas a si mesma, mas a tudo que se cria em seu entorno. Na medida em que a mulher encontra a si mesma e permanecer em harmonia com a sua natureza, ela tem a capacidade de trazer leveza para o mundo masculino com a sua energia, seu movimento, seu olhar, seu sorriso, seu perfume, o tom da sua voz.
Tanto a beleza interior quanto a exterior (e a saúde) são importantes e nenhuma delas deve ser negligenciada para que haja o equilíbrio efetivamente. Ademais, a beleza tem um enorme poder intrínseco a ela que, assim como outros quesitos, pode ser bem ou mal utilizada por cada uma de nós. Assim, o filme trabalha em cima desta mesma polaridade e a consequente reação do externo à qualificação que se dá à energia interna feminina.
A relação das mulheres com a natureza é especial e foi conhecida e trabalhada intensamente através de sociedades no decorrer da história da humanidade. Os índios americanos (tanto estadunidenses como andinos), comunidades celtas, egípcias e asiáticas sempre tiveram uma conduta respeitosa e religiosa com a Mãe Natureza, Mãe Divina, ou a Grande Mãe. As mulheres eram detentoras de um enorme conhecimento de plantas, flores e frutos que supriam desde a alimentação até a medicina. Algumas mais sensitivas iam além, dominando os quatro elementos e, através de muita disciplina interna e desenvolvimento espiritual, tornavam-se verdadeiras Sacerdotisas.
Essa característica da energia feminina é bem representada no momento em que Ravenna assume o reinado, pois tudo e todos que estavam ao seu redor foram atingidos pela energia deturpada e envenenada, fazendo com que a natureza e o povo se voltassem contra eles mesmos. Tudo que era verde e belo se tornou seco e sem vida, quando toda a região entrou em um processo de “inverno permanente”. O vilarejo se tornou feio, frio, escuro e úmido, com vestígio de morte e sinais de destruição, e cujos habitantes pareciam zumbis famintos.
Ravenna se apresenta como uma rainha bela e fria, controlada, e já nas primeiras cenas fica evidente que a madrasta não apenas representa o arquétipo da bruxa, mas que se trata de uma verdadeira feiticeira que adquiriu várias habilidades e pertence a um alto escalão de magia. Seu maior poder é o de se alimentar da energia de jovens e belas moças, tendo sugado reinos inteiros no decorrer dos séculos. Tal vampirização constante é o que a mantém jovem, bela e viva, sendo que desde o início ela cede uma fração da vitalidade que rouba com o irmão Finn, seu último laço sanguíneo o único homem em quem confia.
Diversas vezes aparecem elementos que evidenciam o uso da magia de forma negativa, representada como cacos de vidro negro que lembram a textura do carvão e uma tinta preta e oleosa que parece petróleo, ambos originados pelo carbono retirado das profundezas da Terra. Em outra cena, Ravenna leva uma facada no abdômen e não sangra, voltando-se contra o seu agressor e fazendo cessar os seus batimentos cardíacos apenas com a imposição de sua mão. A rainha também ocupa um trono preto com caveiras talhadas, esta sempre cercada por cavaleiros negros, e tem o corvo como seu animal de poder, utilizando-o também em seus rituais.
Importante frisar que o corvo é tido como símbolo contraposto da pomba, que representa o Espírito Santo. Ambos os pássaros são ícones da dualidade que preside a formação do universo físico e espiritual. Essa dialética é presente em todo o catecismo maçônico, por exemplo, sendo o universo, nesse contexto, um resultado do embate entre a luz e as trevas.
Por conseguinte, são símbolos iconográficos das duas realidades que lutam no interior da matéria e no âmago do espírito humano, evocando Yang e Yin, positivo e negativo, relatividade e gravidade, forças que, por serem contrárias entre si, mantém a vida do universo em equilíbrio. Comumente o corvo é associado ao mal, pois ele, assim como o abutre, se alimenta de cadáveres, porém, no contexto da história, ele simboliza a treva necessária que dá nascimento á luz.
Contudo, dentre todos os seus amuletos, o maior trunfo da rainha, sem dúvida, é o espelho de metal, tão peculiar que ela dedica a ele um grande altar e um salão próprio, o que aponta um visível ao culto à vaidade. Quando invocado por ela, o espelho materializa um homem encapuzado em forma de metal líquido derramado, capaz de revelar verdades. Inicialmente ele aponta que mais um reino cai nos seus encantos, e questiona se não há fim para o seu poder e beleza.
Neste momento, assim como no decorrer das cenas, percebe-se que a rainha permitiu que a beleza a escravizasse, usando todo o seu poder e tendo atitudes grotescas para garantir a sua jovialidade. Ela leva a sua necessidade por beleza física além da questão vida e morte, já que se tornando velha ela deixaria de ter o poder de manipular e seduzir os homens. Em outra cena ela come o coração e as entranhas dos animais e toma um banho com o mais puro leite em plena época de pobreza severa, denunciando um cuidado estético exagerado e distorcido.
Entretanto não precisamos ir até o mundo fantasioso dos contos para detectar comportamentos doentios, bastando observar as academias, shoppings, salões de beleza, clínicas de estéticas e salas de cirurgia. É fácil encontrar pessoas dispostas a flertar com a mutilação corporal e psíquica por conta da tal beleza, cujos padrões ficam cada vez mais inatingíveis num mundo de photoshop e distúrbios alimentares disfarçados de sucesso.
Hoje mais do que nunca as mulheres (e homens) fazem o impossível para manter o viço da juventude, perseguindo-o desesperadamente desde a adolescência até a meia idade, quando entram em crise. Ao sentir o peso da idade no físico, talvez as pessoas consigam perceber que o corpo faz parte do Eu, já que é o templo onde temporariamente habita o Ser, mas não define a sua essência propriamente dita.
Essa falsa ideia de que o Eu se resume no corpo traz uma sensação de inadequação e de necessidade de aprovação, as quais foram implantadas desde a infância pela sociedade, pela mídia e inclusive pelos pais. Todo o sistema gera em seus reféns uma insegurança e baixa autoestima crônicas e eternas, já que se persegue algo totalmente falso e irreal.
Todo esse ciclo vicioso nutre diversos Egos como o da vaidade, da luxúria, da inveja e do orgulho. Ironicamente, ao mesmo tempo o ciclo também é retroalimentado pelos Egos cada vez que estes são reforçados pelo mundo exterior, tornando-se uma prisão interior da qual poucos conseguem escapar.
A libertação demora a chegar principalmente às mulheres, posto que carregam dentro de si um profundo pavor de envelhecerem e serem substituídas por uma versão mais nova e fresca, roubando-lhes a atenção do que realmente importa. Quantas de nós buscam treinar a força de vontade e cuidar com esmero da beleza interna? Quem hoje tem o tempo e a paciência de dedicar-se à boa manutenção do Templo Interior? Citando as palavras do caçador sobre a Floresta Negra, “a força dela se alimenta da sua fraqueza”.
Por outro lado, a personagem da rainha também foi apresentada de uma forma bem humanizada, revelando que a sua loucura se pauta em impressões da infância e uma profunda mágoa gerada de um coração partido, implicando que haveria a possibilidade de qualquer um naquelas condições se tornar assim.
Há uma cena em que ela lembra o dia em que a sua mãe fez um ritual com ela, ainda criança. A aldeia onde viviam estava sendo atacada e rapidamente a mãe cortou a sua mão, derramando três gostas de sangue no leite e a faz beber, afirmando que apenas a beleza poderia salvá-la, sendo a sua proteção e fonte de poder.
Ali o feitiço foi lançado, que pelo sangue da mais bela ele foi feito e apenas com o sangue da mais bela ele poderia ser desfeito. Nota-se que isso ocorreu durante um momento onde a pequena sofria uma forte agressão, subentende-se que a mãe foi morta momentos depois. Logo, Ravenna associou o feitiço ao instinto de sobrevivência, e outras cenas indicam que ela e o irmão viveram sozinhos e em uma situação de privação, fome, pobreza e violência.
Outra característica que se sobressai em suas cenas é que a rainha carrega dentro de si uma forte raiva e mágoa dos homens. Na própria noite de núpcias, ela conta que certa vez fora arruinada por um Rei como ele, o qual a escolheu para substituiu a sua esposa, que já era velha. Com o tempo ela também seria substituída, pois “os homens usam as mulheres, eles nos arruínam e quando terminam, eles jogam-nos para os cães como se fosse lixo”.
Em outro momento, antes de levar a facada do jovem, ela se aproxima e acaricia a sua face, elogiando a sua beleza e confessando que houve um tempo em que ela perderia o coração por um rosto como o dele e ele certamente iria quebrá-lo. Mais além, após se disfarçar de príncipe para envolver a Branca de Neve e dá-la maçã envenenada, Ravenna ironiza: “você vê, criança, o amor sempre nos trai”.
Portanto, fica evidente que por conta das suas experiências negativas, ela percebeu o exterior como cruel e agressivo, afirmando ainda que “vai dar ao mundo a rainha que ele merece”, impiedosamente má. Ainda é oportuno questionar se lá no íntimo, as mulheres não identificariam em si alguns traços semelhantes aos da Ravenna? Em qualquer roda de amigas é comum encontrar mulheres que passaram por diversas desilusões amorosas, ou por uma única profunda e singular ainda na flor da idade. Tais eventos levaram-nas a enxergarem hoje o amor romântico de forma cínica e reduzindo-o a um jogo, cuja peça principal a ser manipulada é o homem, quando este ainda não é adversário.
Atualmente, o maior veneno nos relacionamentos é ingerido quando o casal compete entre si, disputando desde uma simples argumentação até as decisões mais importantes. Claro que a mulher deve estar atenta à forma como o seu amado a conduz, defendendo a sua natureza e individualidade. Suas opiniões devem ser consideradas e respeitadas, já que são ambos que sustentam o relacionamento, não se confundindo com uma submissão ou aceitação cega.
Todavia, cada vez que a mulher cai na armadilha de se colocar em posição de confronto num torneio, ela sai do posto de companheira, ao lado do seu homem, para figurar como adversária. Esse comportamento surge de um impulso de sobrevivência ao se sentir atacada, ou cada vez que não consegue o que quer ou visualizar uma possível injustiça, ainda que ilusória. Enfim, não há qualquer chance de sucesso em resolver nenhuma questão, desencadeando-se os sentimentos de perda, mágoa, rejeição, raiva e vingança, formando um ciclo vicioso e transformando gradativamente a relação de benefício em prejuízo.
Logo, verifica-se que a maneira como a mulher reage às suas decepções amorosas pode determinar em que vibração irá se conectar, sendo a rainha a representação do seu extremo negativo. A busca final do ser humano é a unidade no amor, mas não há outra forma de atingi-lo se não conhecemos os nossos próprios mecanismos auto-sabotadores da felicidade.
Como uma pessoa descrente do amor irá buscá-lo ou se sentir merecedora dele? Toda a amargura que se acumula a cada tentativa de relação malsucedida gera uma raiva do mundo e posteriormente uma enorme perda da vontade de viver. A rainha detém grande poder e sucesso a cada golpe que dá, porém é miseravelmente infeliz, e, como bem colocou Carl Jung, “Onde o amor impera, não há desejo de poder, e onde o poder predomina, há falta de amor; um é a sombra do outro”. Por fim, a questão com a qual nos deparamos é como se pode curar um coração partido?
Como eliminar os defeitos internos e derradeiramente os Egos que nos escravizam? Retornando ao caso em tela, o espelho fala à rainha que a pureza e inocência da Branca de Neve podem ser a sua destruição, mas também são a sua salvação, concentrados em seu coração, e quando ela o obtiver, nunca mais necessitará consumir a energia de nenhuma outra mulher.
A rainha reage mal, baseada no orgulho ferido, por haver alguém mais bela do que ela, e na inveja, por querer ter para ela a beleza pura da garota, e busca o caçador para matá-la. A madastra quer ter o coração da jovem em mãos literalmente, embora a mensagem do espelho falasse de maneira metafórica em relação à energia mais sutil.
Em contraponto a toda essa escuridão, está a Branca de Neve, que viveu em cárcere desde a morte do pai, isolada em uma masmorra de uma torre, privada inclusive da própria imagem já que ela vê o seu próprio reflexo apenas nos momentos finais da trama. Nesse sentido, ela representa o Conceito Imaculado, puro ou a imagem da alma mantida na Mente de Deus; qualquer pensamento puro mantido por uma parte de vida, para e em favor de outra parte de vida; o ingrediente essencial a cada experiência alquímica sem o qual não haverá sucesso.
Em outras palavras, pode-se concluir que o fato de não ter consciência de sua própria beleza exterior, Branca de Neve não passou pela experiência de Narciso. Sem a oportunidade de apaixonar-se pela sua própria imagem, ela não desenvolveu em si os substratos psíquicos do poder do físico, seja a vaidade, a luxúria, o orgulho ou inveja. Inclusive, a adolescente poderia estar profundamente revoltada com tudo que lhe foi feito e ter remoído uma sede de vingança no decorrer dos anos de prisão. Contudo, a clausura foi o que preservou a sua alma infantil, cuja fuga despertou o início do amadurecimento.
Ainda em sua primeira cena, reparamos que a história se ambienta durante a fase de transição entre o paganismo e o cristianismo, pois a Branca de Neve segura nas mãos bonecos por ela confeccionados de palha, representando o masculino e feminino. Em seguida, se dirige ao fogo como divindade, mas profere o Pai Nosso, oração cristã, apontando ser ela uma representação solar a fim de contrapor a rainha lunar.
No entanto, ela traz consigo aquela característica feminina de interagir com a natureza, tão cultivada pela antiga religião, uma vez que a sua fuga foi sinalizada por dois pássaros que a guiaram até um cavalo branco que a aguardava na beira da praia. Inclusive, a montaria também é vista como uma espécie de iniciação atingida depois de uma peregrinação, sendo própria de guerreiros, geralmente representados por reis ou cavaleiros, e por isso também é chamada de iniciação real.
Ainda, montar um cavalo pode significar a passagem por um momento de transição, de fluxo e movimento, e por ser branco, pode representar o processo de maturação psicossexual, a perda da virgindade no sentido de ingenuidade no momento em que há o encontro com a vida exterior, com o mundo.
Nessa linha de raciocínio, o próprio deslocamento físico dos personagens acompanha a necessidade de desenvolvimento emocional da protagonista, a qual experimenta a dor de buscar trilhar os próprios caminhos, embarcando em uma viagem interior que a levará a um processo de autoconhecimento. Ressalta-se ainda que a fuga a levou exatamente para a Floresta Negra, local onde poucos se arriscam e onde Ravenna não consegue interferir. É tão grande o poder daquela região que sequer os cavalos entram, obrigando aqueles que a buscam a seguirem a pé.
Ao entrar nela e em meio ao desespero, a princesa inala o seu pó alucinógeno e perde a consciência, passando por um processo similar à descida de Perséfone ao reino de Hades. Ambas as garotas que, após mergulharem no próprio inconsciente tornam-se mulheres, renascendo para a vida amadurecidas, donas do próprio nariz.
Ainda sobre as florestas, nos contos elas são praticamente uma passagem obrigatória na trajetória dos personagens que precisam aprender, transformar, libertar, resgatar ou superar a si mesmos ou aos outros, representando ainda o feminino, o útero materno, a origem da vida, o emocional, marcando também toda ambiguidade e conflito entre tudo que é luminoso e sombrio na psique.
O fato de ter atingido certa idade e de ter fugido, demonstra um despertar da consciência emocional da Branca de Neve, motivo pelo qual os poderes da rainha estão diminuindo e a terra floresce novamente. É o coração, a Fagulha Divina da garota que acorda para o mundo adulto e feminino, a qual precisa ser consumida pela madastra para sua própria salvação. Ainda, a bela mulher que emerge de dentro da princesa ameaça verticalmente o poder de sedução de Ravenna, que evita envelhecer ao custo de muitas vidas. Caso a jovem consiga se estabelecer como mulher, ela será rival direta da rainha, ativando fortemente na madrastra todos aqueles Egos.
Paralelamente, pode-se avaliar que a rainha representa um punhado destes Egos negativos que existem no interior de uma mulher, os quais sentem-se afrontados pela crescente chama de amor, pureza e inocência dentro do coração daquele ser feminino, ameaçando a sua predominância na medida em que aumenta a Chama, equilibrando a energia negativa e levando ela a trilhar o caminho do meio.
A resistência é forte e, assim como a Ravenna, tais Egos atacam como podem, batalhando a cada iluminação, transformando o processo de desenvolvimento da consciência e uma verdadeira guerra. Ainda dentro da floresta, a Branca de Neve já ganha um aliado, o caçador, que passa de perseguidor à protetor e tem a tarefa de guiar a jovem com segurança até o castelo do Duque, vizinho e braço direito do seu falecido pai, onde acredita ser acolhida. Ainda, na ponte de saída da Floresta Negra, ambos são brutalmente atacados por um Troll, o qual afasta o caçador e no momento em que está prestes a atacar a princesa, sente-se acolhido por sua compaixão e desiste.
A seguir, já fora da floresta, a dupla encontra as senhoras do lago, que os abrigam pela noite. Trata-se de uma comunidade apenas de mulheres e crianças, onde elas marcam os próprios rostos com cicatrizes, sacrificando a sua beleza física como forma de proteção contra a rainha, pois sem a o poder da beleza, elas tornam-se desinteressantes para Ravenna.
Não obstante, estas mulheres chamam a atenção, tendo em vista que este é o primeiro contato com o feminino após o cárcere de muitos anos. Elas se cobriam com véus e pintavam os olhos, lembrando o uso do Kohl, um tema bem abordado pela analista Junguiana Barbara Black Kolvut no livro “A Tecelã”. O kohl é uma substância plúmbea utilizada desde eras remotas para contornar os olhos, as janelas da alma. Ao ser utilizado como delineador para pintar os olhos, entende-se que a moça o faz para velar a alma.
Na Bíblia, as mulheres se preparam para atos heróicos aplicando kohl num ritual cerimonioso em que se vestem e mascaram sua intenção íntima. Na época do Antigo Testamento, as mulheres entravam em contato com sua força criativa feminina cobrindo-se com véus. Portanto, as mulheres dessa aldeia representam tudo que é oculto e feminino, o respeito e conhecimento dos ciclos internos da mulher, alterando momentos de expansão e introversão.
É fundamental que toda mulher aprenda a sabedoria dos ritmos femininos para conseguir se desenvolver internamente na busca pelo equilíbrio. Hoje sentimos que muitas mulheres se masculinizam, tentando controlar, negar ou suprir esse nosso ritmo intrínseco ao gênero, lunar ou menstrual, caindo no radicalismo e cavando o desentendimento consigo mesma.
Como bem colocou Daniela Cuccia no seu mais recente texto, produzido durante o solstício de inverno, “A sociedade patriarcal em que vivemos ao longo dos tempos veio cortando as ligações sagradas das mulheres com elas mesmas. Proibiu suas danças ao redor das fogueiras no princípio, hoje manipula seu ciclo menstrual e seu parto com hormônios artificiais”.
Aponta também que é fundamental as irmãs “despertarem dessa anestesia que o sistema injetou nas mulheres. Menstruar, amar, parir, amamentar, educar, trabalhar e viver não é sofrer. É experimentar o poder divino da vida. É aceitar a Deusa que habita em ti em toda sua plenitude, com todas as nuances e cores. Com todas as fases da lua, com todos os ciclos da natureza girando em perfeita harmonia”.
Sucessivamente, já em terra firme, a dupla é surpreendida pelos oito anões, apresentando-se como outsiders, foras da lei que vivem uma vida paralela e isolada em meio à natureza. Mais uma vez o roteiro foge do padrão, onde normalmente representa-se o acolhimento da moça pelos seus dotes culinários e tipicamente femininos.
Ainda, um dos anões em especial, Muir, se assemelha a um mago ou druida; é cego, mas vê além do que os olhos permitem e com base nessa sabedoria e percepção que eles levam consigo a dupla até uma parte bem reservada da floresta, através de cavernas que lembram as minas. O caminho os leva ao Santuário, o Lar da Fadas, uma floresta iluminada e verde, onde a natureza está em harmonia. Ali se conserva a sutileza, sendo possível enxergar a energia das plantas e dos animais, bem como os elementais que os regem e protegem.
Durante a noite o bando se reúne em torno do fogo e em um dos diálogos revela que os anões eram escolhidos para trabalhar nas minas por conta de sua habilidade de ver a luz na escuridão. Em outro momento Muir, o vidente cego, questiona os seus companheiros se eles não estão se sentindo bem, sem dores corriqueiras, evidenciando o poder de cura da princesa, pois a mulher em harmonia e equilíbrio tem o poder de cura sobre o ambiente e aqueles que a cercam.
A permanência de uma noite em meio à natureza intocada, fez com que ela entrasse em sintonia direta com a sua essência feminina e ao acordar, ela é novamente guiada através dos pássaros e seus elementais através de um caminho límpido e iluminado pelos primeiros raios da manhã. A seguir, chega em uma clareira e nela encontra-se um carvalho gigante em meio às águas e dali surge um cervo branco, alto e majestoso, com enormes chifres em forma de galhos, o qual nunca havia aparecido para ninguém. Este ser sem dúvida tem o maior peso simbólico na trama.
Para a civilização celta, o cervo é um sinal de exteriorização das próprias e divinizadas forças telúricas animando a Terra. Considerado sagrado, foi representado através de Cernunnos, o Deus da fertilidade, senhor dos animais e da vegetação, motivo pelo qual o Santuário era iluminadamente mágico, sendo um território por ele protegido, onde as sombras da rainha não chegavam, quase como um guardião da Câmara Secreta Divina em cada um de nós.
Na antiga religião, os sacerdotes vestiam mantos de peles, usavam adornos com chifres e tomavam uma bebida feita com o “veludo” das pontas dos chifres do cervo, que tinha efeitos afrodisíacos e o poder de provocar visões.
O cervo é sinal de renovação cíclica e, precisamente por isso, intermediário entre o Homem e a sua Transcendência. O animal também é símbolo de conhecimento das plantas, tanto medicinais como místicas, sendo dignificado como portador de abundâncias e de agilidade, tanto física como espiritual.
Da mesma sorte, o cervo branco também foi louvado pelos templários como um animal fantástico que aparece perante Galahad, filho de Lancelote do Lago. Em A Demanda do Santo Graal, o cervo branco aparece para Galahad, Boorz e Parcifal enquanto eles cavalgam em uma floresta de carvalhos. O animal miraculoso se metamorfoseou em Cristo e os quatro leões que o cercavam, protegendo-o, tornaram-se figuras miraculosas.
(...)A relação com o cristianismo também se estabelece pela cor branca do animal, universalmente aceita no Ocidente como signo de pureza, a cor que assume o manto de Jesus de Nazaré durante a Transfiguração. Portanto, o aparecimento desse animal à Branca de Neve trouxe uma carga de benção divina, sendo ela a escolhida para transformar toda maldade que se instaurou naquele reino através da força da sua própria pureza e inocência.
Enfim, o cervo traz o significado de renascimento e está associado à renovação do ser humano, sendo aquele que revela, que conduz alguém para um encontro consigo mesmo, como um mediador entre o indivíduo e o mundo. Neste momento, a Branca de Neve, encantada, se aproxima dele, o qual aceita que ela o toque e se curva ao final em sinal de aprovação e predestinação ou graça por merecimento.
Concomitantemente os anões, o caçador e todos os animais se reúnem em torno do evento do encontro e observam o momento sagrado que ali acontecia. Muir afirma que ela é a própria vida e que onde ela for, ele a seguirá, brotando assim uma liderança natural e divina. Esse acontecimento está associado à alma, a ressurreição, e quando, bruscamente o cervo é atingido por uma flecha dos soldados da rainha e se esvanece em forma de mil borboletas brancas, simboliza a transformação e o novo começo para Branca de Neve.
Ora, evidentemente o aparecimento do cervo aconteceu como reconhecimento da preparação da garota que agora se torna uma mulher pronta para ser regente de seus atos como instrumento da Vontade Divina na Terra. Inclusive, momentos antes de morder a maçã, ela afirma: “antes eu sentia ódio pela rainha, mas que agora há somente pena”.
Isso demonstra que ela conseguiu transmutar o seu sentimento de raiva em compaixão pela situação interna de miserabilidade em que se encontra a rainha. Sim, toda graça recebida é precedida pela senda de sacrifício e autotransformação, contudo, visualizando a forma como cada mulher se tornou escrava de si mesma, não surge instantaneamente a vontade de batalhar por libertação de tudo aquilo que nos prende?
Como já disse Francis Bacon, “É um estranho desejo buscar o poder e perder a liberdade”. Ainda, o mentor do Gnosticismo Contemporâneo, Samael Aun Weor, ressalta em sua obra o poder divino criador da mulher, mencionando que “assim como a mulher é capaz de por um filho sob o tapete da existência (…) e formar um Jesus, ou um Hermes Trismegisto, assim também qualquer mulher pode ser capaz de uma auto-criação extraordinária. pode criar-se a si mesma, transformar-se”.
Resta questionar como podemos nos tornar a predestinada de nossa própria história, saindo do posto de meras passageiras expectadoras à condutoras da nossa própria existência? Como podemos nos salvar de nós mesmas? Devemos buscar, semear, cultivar e colher a pureza em nós e em tudo e todos que nos cercam. Nós já descansamos o suficiente, precisamos transformar o gelo em fogo, e despertar a luz do verdadeiro amor divino. Não há renascimento sem morte, e é uma guerra que jorra sangue, mas só nos resta arregaçar as mangas e fazer o que precisa ser feito.
“Ferro vai derreter! Mas ele vai se contorcer dentro de si mesmo! Todos esses anos, tudo que eu conheci foi escuridão. Porém eu nunca vi uma luz mais brilhante do que quando meus olhos recém se abriram. E eu sei que aquela luz queima em todos vocês! Essas brasas devem se tornar chamas, ferro em espada! Eu serei a sua arma, forjada com um fogo feroz que eu sei há em seus corações! Porque eu vi o que ela vê, eu sei que ela sabe, eu posso matá-la. E eu prefiro morrer hoje que viver mais um dia desta morte! Quem vai cavalgar comigo? Quem vai ser o meu irmão?”
Não, escuridão, você não pode ter o meu coração, pois eu marcho rumo à Vitória Divina!