Não é raro encontrar uma pessoa de meia idade, ou na terceira idade, usando roupas adolescentes. Eu mesma comprei um caderno cheio de bonequinhas nas folhas, um forte indicativo de que estou igualmente infectada por essa febre em querer voltar à época teen. Outros sintomas da aborrecência? Adultos que vivem nas clínicas de estética aplicando botox, fazendo lifiting e usando outras técnicas de rejuvenescimento; pessoas que malham em desespero para chegar ao corpo ideal - que seria o corpo adolescente; a crença institucionalizada de que o importante é o hoje, o agora, por isso não há limites para se divertir - porque o amanhã é outro dia.
Poucos adultos começam a pensar no amanhã, e assim imitamos a educação que está entrando na vida dos nossos filhos pelas várias telas, desde às telas de televisão, computador ou celular, até mesmo às telas que emolduram produtos e serviços nas lojas dos shoppings.
Há outras variações que deixam claro que VIVEMOS UM TEMPO EM QUE TUDO É PERMITIDO, desde que o PENSAR seja descartado.
Difícil precisar o que é juventude. Quem não se considera jovem hoje em dia? O conceito de juventude é bem elástico: dos dezoito aos quarenta, todos os adultos são jovens. A juventude é um estado de espírito, é um jeito de corpo, é um sinal de saúde e disposição, é um perfil do consumidor, uma fatia do mercado onde todos querem se incluir. Parece humilhante deixar de ser jovem e ingressar naquele período da vida em que os mais complacentes nos olham com piedade e simpatia e, para não utilizar a palavra ofensiva – velhice – preferem o eufemismo “terceira idade”.
Passamos de uma longa, longuíssima juventude, direto para a velhice, deixando vazio o lugar que deveria ser ocupado pelo adulto. ''O Brasil de 1920 era uma paisagem de velhos'', escreveu Nelson Rodrigues em uma crônica sobre sua infância na rua Alegre. ''Os moços não tinham função, nem destino. A época não suportava a mocidade”. O escritor estava se referindo aos sinais de respeitabilidade e seriedade que todo moço tinha pressa em ostentar, na primeira metade do século XX. Um homem de 25 anos já portava o bigode, a roupa escura e o guarda-chuva necessário para identificá-lo entre os homens de 50, e não entre os rapazes de 18. Homens e mulheres eram mais valorizados ao ingressar na fase produtiva/reprodutiva da vida do que quando ainda habitavam o limbo entre a infância e a vida adulta chamado de juventude ou, como se tornou hábito depois da década de 1950, de adolescência.
A puberdade como fase de amadurecimento sexual das crianças, que marca a transição do corpo infantil para as funções adultas da procriação, tem lugar em todas as culturas. Da Grécia clássica às sociedades indígenas brasileiras, o/a púbere é reconhecido enquanto tal, e a passagem da infância para a vida adulta é acompanhada por rituais cuja principal função é reinscrever simbolicamente o corpo desse/a que não é mais criança, de modo a que passe a ocupar um lugar entre os adultos. Mas o conceito de adolescência, que se estende em certos países até o final da juventude (hoje em dia não hesitamos em chamar de adolescente a um moço de vinte anos), tem uma origem e uma história que coincide com a modernidade e a industrialização. A adolescência na modernidade tem o sentido de uma moratória, período dilatado de espera vivido pelos que já não são crianças, mas ainda não se incorporaram à vida adulta.
O conceito de adolescência é tributário da incompatibilidade entre maturidade sexual e o despreparo para o casamento. Ou, também, do hiato entre a plena aquisição de capacidades físicas do adulto – força, destreza, habilidade, coordenação, etc – e a falta de maturidade intelectual e emocional, necessária para o ingresso no mercado de trabalho. O aumento progressivo do período de formação escolar, a alta competitividade do mercado de trabalho nos países capitalistas e, mais recentemente, a escassez de empregos, obrigam o jovem adulto a viver cada vez mais tempo na condição de ‘adolescente”, dependente da família, apartado das decisões e responsabilidades da vida pública, incapaz de decidir seu destino.
O adolescente das últimas décadas do século XX deixou de ser a criança grande, desajeitada e inibida, de pele ruim e hábitos anti sociais, para se transformar no modelo de beleza, liberdade e sensualidade para todas as outras faixas etárias. O adolescente pós moderno desfruta de todas as liberdades da vida adulta mas é poupado de quase todas as responsabilidades.
Parece que ao escrever isso estou limitando o foco dessa análise aos adolescentes da elite, os únicos que de fato podem consumir e desfrutar da condição de jovens adultos cujos desejos e caprichos são sustentados pelos pais. Não é bem assim. Na sociedade pautada pela indústria cultural, as identificações se constituem através das imagens industrializadas. Poucos são aqueles capazes de consumir todos os produtos que se oferecem ao adolescente contemporâneo – mas a imagem do adolescente consumidor, difundida pela publicidade e pela televisão, oferece-se à identificação de todas as classes sociais. Assim, a cultura da sensualidade adolescente, da busca de prazeres e novas “sensações”, do desfrute do corpo, da liberdade, inclui todos os adolescentes. Do filhinho-de-papai ao morador de rua, do jovem sub empregado que vive na favela ao estudante universitário , do traficante à patricinha, todos os adolescentes se identificam com o ideal publicitário do adolescente hedonista, belo, livre, sensual. O que favorece, evidentemente, um aumento exponencial da violência entre os que se sentem incluídos pela via da imagem mas excluídos das possibilidades de consumo. Volto a esse ponto mais adiante.
O efeito paradoxal do campo de identificações imaginárias aberto pela cultura jovem é que ele convoca pessoas de todas as idades. Quanto mais tempo pudermos nos considerar jovens hoje em dia, melhor. Melhor para a indústria de quinquilharias descartáveis, melhor para a publicidade – melhor para nós? O fato é que nas últimas décadas viramos jovens perenes. Por que não? Se no tempo de Nelson Rodrigues todos queriam ser velhos; se cada época elege um período da vida para simbolizar seus ideais de perfeição – que lei, moral ou natural, deve determinar os critérios de maturação humana, os padrões de longevidade, o limite para o que podemos exigir ou desfrutar de nossos corpos? Se ainda não se sabe do que a máquina humana, feita de apetites e de linguagem, é capaz, por que o poder da cultura, do dinheiro, do cinema e da televisão não podem congelar cinco, seis gerações num estado de juventude perpétua? O ponto de vista da psicanálise.
Para Maria Rita Kehl, doutora em psicanálise pela PUC de São Paulo, a cultura ocidental é a que acredita ser possível viver sem nenhuma dor. Que acredita que boa vida é "só de prazeres, só de conquistas, realizações, sucesso, palavra muito usada". Assim, é uma cultura que "não produz modos de sofrer", ao contrário por exemplo do Cristianismo, "que durante séculos produziu modos se sofrer".
Na tradição judaico-cristã, observou, as pessoas "aceitam o sofrimento porque acham que Deus enviou o sofrimento, sofrer é normal, e isso não deixa de ser um conforto. As pessoas não deixam de sofrer, mas o sofrimento faz sentido".
A corrente literário-filosófica do Romantismo que prosperou na Alemanha e outros países entre os séculosXVIII eXIX também enfatizou o sofrimento, pela "perda de relação com a natureza, pela separação da natureza, pela impossibilidade da comunhão com o todo". No Romantismo, o sofrimento tornou-se, enfim, fonte de inspiração poética, sinal de sensibilidade.
Estes são os modos de produção de sofrimento no contexto de algumas culturas. "O sofrimento passa a ter sentido para a pessoa que sofre", disse.
A CULTURA DOS PRAZERES E DAS DROGAS
A atual cultura do Ocidente, em contrapartida, é uma cultura individualista e hedonista. "É a cultura dos prazeres, em que o sofrimento nos deixa em uma solidão absoluta. Cada um fica sozinho com seu sofrimento e tem vergonha de dizer para o outro que sofre. Porque, afinal, sofrer é coisa de otário! Quem é esperto não sofre!" No Brasil as pessoas ainda se amparam mais, mas em alguns países essa postura é exacerbada, notou.
E nesse sentido as drogas, salientou Maria Rita Kehl, se tornam uma porta de entrada, se transformam em um escape, "em algo que apazigua, se transforma em objeto poderoso, capaz de proporcionar grandes coisas, e também é um objeto proibido, que seduz".
MUDANÇA CULTURAL
A cultura dos prazeres, disse, está associada à cultura do consumo, atual fase do capitalismo. O capitalismo de produção, do séculoXIX e início do século XX, foi construído pelo culto à renúncia do prazer, "as pessoas tinham que se sacrificar para produzir, o que marcou muito a ética protestante, por exemplo, e Freud cuidou do sujeito produzido por esse contexto".
Mas agora é diferente. É o capitalismo de consumo,do imperativo do prazer. "Mas todos sabemos que não é bem assim, não é só fazer isso e o prazer vem imediatamente. E mesmo que os imperativos de consumo se dirijam a todos em uma sociedade, a resposta só é possível para alguns. Muita gente fica de fora. Aí é que a droga entra, como um objeto que substituiria a todas as outras mercadorias que o cara não pode ter e que ele todo dia vê anunciadas que ele deveria ter".
ADOLESCENTES, AS VÍTIMAS
Maria Rita Kehl entende que os adolescentes talvez sejam, hoje, "as maiores vítimas desse imperativo do gozo que está na cultura".
A publicidade, porta-voz mais importante desse imperativo de prazer, de felicidade absoluta, de gozo sem limites, "tem no jovem a figura privilegiada. Ele é o eleito para gozar. A criança ainda tem que ser educada, tem que ir para a escola, tem algumas tarefas, ainda está sob as ordens do pai e da mãe. Mas o adolescente, no imaginário da publicidade e da telenovela, é aquele que chegou, digamos, no potencial da vida adulta que já tem, com certa autonomia no ir e vir e de consumir, e ao mesmo tempo não tem as responsabilidades da vida adulta. Então, é a figura privilegiada, a qual se dirigem todos os apelos de consumo".
Mesmo quando a marca anunciada pela publicidade seja para consumo de adultos, a imagem que será usada é a do jovem e do adolescente. "A não ser que seja propaganda e um creme anti-rugas ou algo assim", brincou a psicanalista.
CERCADOS DE GOZANTES
Assim, todos estamos hoje, disse Maria Rita Kehl, "cercados de adolescentes gozantes", em propagandas de tênis, carro, roupa, cerveja, espalhadas por outdoors, televisão ou capas de revista.
E o adolescente, observou, naturalmente se identifica com essa imagem que é devolvida a ele, de gozo total. "Mas todos sabemos que ser adolescente não é um gozo absoluto. Ser adolescente é uma época de inseguranças, ele perdeu o corpo de criança e ainda não está à vontade com o novo corpo, que não é totalmente adulto ainda. Ele mudou de turma, a família não protege mais, tem que se proteger sozinho e tem medo da rejeição. O adolescente fica apavorado sem amigos".
De novo, a porta da droga se oferece. "Nessa idade - que não é o pleno gozo que a publicidade representa -é muito fácil para o adolescente resolver o seu problema, a sua inadequação, a sua solidão, a suadificuldade de dominar os códigos da vida adulta, o seu medo do futuro pelo caminho da droga, que está aberto para ele."
PORTAS DE ENTRADA
Maria Rita Kehl assinala que, em termos bem pessoais, acredita que a cultura ocidental oferece duas grandes portas para o adolescente entrar na vida adulta. Uma é a porta do shopping center, "onde ele pode ir sozinho, é lugar protegido". E a outra é "a porta da maconha", o rito de entrada para a vida adulta em alguns círculos.
Ela entende ser fundamental, então, que sejam oferecidas outras "portas de entrada" para o jovem, em termos por exemplo de atuação política, de ação social, de informação, de cultura, de estímulo à criatividade, como ocorria na geração da contracultura dos anos 60.
A VISÃO DOS ADULTOS
Outra questão a ser considerada, advertiu a psicanalista, é que "os pais também são influenciados pela cultura individualista, hedonista, da pós-modernidade. Achamos que temos filhos para poder dar tudo a eles. Se não pudermos dar tudo a eles, somos fracassados".
Muitas vezes, assinalou, os pais depositam nos filhos, principalmente na adolescência, "as nossas fantasias, o que a gente queria ter tido de boa vida e não teve. E essa nossa fantasia favorece o caminho da drogadição", alertou.
Pressionados, estimulados pela cultura do hiper-consumo e do prazer, os jovens podem encontrar na droga, de novo, a porta de entrada, e que muitas vezes será a porta de saída da vida. É assim um desafio para os pais procurarem entender o que está acontecendo e contribuir para ajudar os filhos a encontrar as outras portas, as da criatividade, das ações política e cultural, marcadas pela valorização da vida e do não-consumo pelo puro consumo.
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